“No princípio era o verbo”, já disse João. Tudo é filho das ações premeditadas ou não. Todas as vidas formam a prole dos intentos concebidos pelo fazer.
A arte de habitar algum lugar está na busca pelas possibilidades e pela criatividade que supre sua falta. No final das contas, a existência é uma poesia colossal que exige muito pouco da alma que se move. Da alma andarilha desse universo inconsequente.
O cerne da falta de sentido que todos buscam superar está na compreensão do mundo sem conceitos. Desfazer-se das entranhas pretenciosas do existir aproxima toda a criação de sua essência. É o mesmo que tocar nos versos. Amar as sutilezas e as banalidades de uma realidade que, por si só, não possui razão em ser, a não ser que se aceite a riqueza de todo o vazio que a ronda.
Carlos Nejar apostou que apenas a junção do elemento mágico no prosaico consegue elevar o poema à potência de sonho. Assim também acontece com a rotina dos dias. Todo o sentido vivenciado cotidianamente pode sobrepujar o enfadonho ciclo que, involuntariamente, se procura respeitar. O desrespeito das métricas é o que auxilia a contabilização de amores e pequenos prazeres.
O sonho de uma existência faz-se à medida em que o verbo, à Manoel de Barros, delira. É quando permitimos a permutação das funções. O aniquilamento delas. Permitir a inutilidade é despir-se de conceitos e abrir as portas às descobertas. É sempre possível descobrir o que já foi descoberto, basta darmos olhos às palavras e aos desconceitos.
Os neologismos da vida são de propriedade de quem conhece demasiadamente a linguagem a ponto de criar a intimidade da invenção. Conseguir inventar a si mesmo. Atribuir novos sentidos às lembranças.
Há, pois, sempre uma câmara secreta sedenta por ser desvendada na linguagem. A linguagem contém todas as vidas encrustadas em suas paredes.
Inteligentemente, Demócrito já profetizou que a palavra é a sombra do ato. Se a palavra é a sombra do ato, o coletivo de toda essa conversa resulta na vida e na linguagem como um todo. Todas as peraltices de uma existência são vislumbradas na respiração das contextualizações mentais que antecedem ações.
O maior desafio para a ciência não está na comprovação das leis da física, mas na existência dos poetas. Toda a vida que sobrevive pela imaginação é imprevisível. A todo o momento, somos capazes de inventar e poetizar. Descobrir e perder. Amar e doer.
O maior prazer de qualquer poeta está no poder insuperável de descobrimento. O amor pela poesia está na contingência do desconserto. É o orgasmo da falta de dados. A invenção da descoberta.
Se não há informações, há, então, a sua criação. As estrofes não exigem veracidade. Para ser verossímil, basta a coincidência com os sentimentos. Basta o vazio completo com mais vazio.
A criação de um poeta tem sentido à medida em que consegue despadronizar pensamentos. Reinventar vidas. Personificar objetos e sensações.
Fazer das árvores aliadas na levada dos dias. Transformar as andorinhas em velhas companheiras. Montar no vento como quem monta em um cavalo, à procura e rumo a qualquer lugar.
Mais uma vez, Nejar soube traduzir o grande poder da poesia, que é o de saber ser o fogo da água e a água do fogo. Nenhuma antítese é empecilho para as existências. Nenhuma afirmação é absurda para quem está aberto às reinvenções.
A crítica e a dificuldade em aceitar a poesia talvez estejam, então, no medo do desconhecido. Todo o versista ama a escuridão. Conhecer os abismos. Criar abismos no conhecido. Fazer íntimo o desconhecido.
Dedilhar a poesia é, pois, querer as imprecisões ressurgentes de qualquer ameaça de verbo. A potência em ser já é suficiente para o poeta. A falta dela também.